Todos os anos são amplamente divulgadas notícias envolvendo produções artísticas e a forma como essas obras afetam crianças e adolescentes, trazendo à tona discussões sobre classificação indicativa, principalmente no contexto de filmes e videogames.
Na controvérsia mais recente, questionou-se a classificação do filme “Como se tornar o pior aluno da escola” do apresentador Danilo Gentili, que foi alterada pelo Ministério de Justiça e Segurança Pública – MJ, órgão público responsável pela temática, de 14 anos para 18 anos.
Ainda que seja uma questão mais expressiva no campo do audiovisual, a classificação etária também impacta as atividades de museus, instituições culturais e exposições artísticas. Contudo, até recentemente, a regulamentação sobre classificação indicativa não havia ainda se debruçado sobre essas situações de forma específica.
A ausência de previsões legais mais claras sobre sua aplicação gera debates e eventualmente problemas no cotidiano dos museus, ao ponto de um grupo de advogados terem discutido a elaboração de um manual de classificação indicativa para museus a fim de suprir essa lacuna legislativa.
Em setembro de 2017, a mostra “35º Panorama de Arte Brasileira”, do Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM, foi foco de polêmica envolvendo a performance “La Bête” (em português, O Bicho) do artista Wagner Schwartz, quando uma mulher e sua filha pequena tocaram o artista, que estava nu, durante a apresentação. O caso repercutiu nas redes sociais, após ser tirado de contexto, gerando intensas discussões sobre a presença da criança no local e sua interação com o artista – tendo sido aberto, inclusive, um inquérito pelo Ministério Público de São Paulo, de modo que o episódio impactou fortemente a vida do artista.
Na mesma época, a exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, do Santander Cultural, em Porto Alegre, foi também alvo de críticas nas redes sociais e teve seu encerramento antecipado. Um dos pontos mais questionados durante o incidente foi a possibilidade de acesso de menores de idade à exposição por conta da falta de classificação indicativa, levando o então Ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, a defender classificação indicativa em exposições.
Ainda em 2017, o tema da classificação indicativa voltou mais uma vez à tona no meio das artes visuais: o MASP determinou que apenas maiores de 18 anos poderiam visitar sua tão esperada exposição “Histórias da Sexualidade”.
No ano seguinte, o Ministério Público Federal recomendou a suspensão da exposição “Sonho agridoce, ou imaculado”, no Centro Cultural São Geraldo, em Belo Horizonte, caso não tivesse sido providenciada a classificação indicativa, ainda que a instituição alegasse que a mostra se encontrava dentro dos padrões sugeridos para a classificação livre.
Para esclarecer, a classificação indicativa é o mecanismo utilizado para indicar a idade não recomendada para crianças e adolescentes em produções artísticas, no intuito de informar previamente aos pais ou responsáveis legais sobre o conteúdo das obras, garantindo-lhes o direito de escolha.[1] Para isso, conta com três eixos temáticos que vão definir qual será a classificação de um certo conteúdo: “sexo e nudez”, “drogas” e “violência”.
A partir da análise desses eixos, é fixado o nível da classificação, variando de “livre” a “não recomendado a menores de 18 anos”. O Guia Prático de Classificação Indicativa, atualmente na 4º edição, é o documento do MJ a ser consultado no momento de se determinar a classificação de produções culturais.
A classificação indicativa nasceu junto com a Constituição Federal de 1988 – CF, como uma alternativa à prática da censura classificatória, estabelecida durante a ditadura militar através da Lei n° 5.536/1968.[2] Por ser indicativa, a classificação deixou o caráter de censura de lado e passou a ser uma ferramenta de cumprimento das obrigações constitucionais de proteção de crianças e adolescentes pela família, sociedade e Estado (art. 227).
O tema encontra-se estabelecido na CF nos arts. 21, XVI, e 220, § 3º, I, que conferem à União a competência para regular a classificação etária. Com base nestes dispositivos, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA traz especificações sobre a aplicação da classificação indicativa nos diversões e espetáculos públicos, bem como as punições caso haja descumprimento, seja por sua omissão ou atuação em desacordo com a classificação indicativa.[3]
Porém, são as portarias do Ministério da Justiça que, de fato, regulamentam a classificação indicativa, trazendo regras práticas. Desde a entrada em vigor da CF, foram editadas 23 portarias sobre o assunto, mas, até novembro de 2021, nenhuma havia tratado de forma satisfatória sobre a classificação indicativa em espaços culturais e exposições de artes visuais.
A nova Portaria MJSP nº 502/2021, que revogou a Portaria MJ nº 1.189/2018, inova ao dedicar uma seção inteira voltada para as “diversões e os espetáculos públicos”, na qual as exposições de arte se enquadram.
Essa Portaria estabelece quais obras se submeterão obrigatoriamente à análise de classificação indicativa pelo MJ (art. 4º) – como é o caso de obras audiovisuais destinadas à TV aberta ou ao cinema –, quais serão simplesmente autoclassificadas, sendo dispensadas da avaliação prévia do Ministério (art. 5º), e quais não serão objeto de classificação indicativa (art. 6º).
As mostras de artes visuais enquadram-se no sistema de autoclassificação e, portanto, a instituição cultural deverá, a cada exposição, reunir suas equipes jurídica, educativa e de curadoria para checar a lista de obras à luz das recomendações do Guia Prático do MJ. Por exemplo, uma pintura de um nu artístico sem teor erótico será considerada “livre”, contudo, se uma certa obra conter cenas com apelo sexual, a classificação pode ser de 12 anos.[4] No caso de incertezas, recomenda-se a consulta de um profissional jurídico especializado.
Ainda que o sistema de classificação seja um mecanismo para garantir aos pais e responsáveis o direito de escolha sobre o que seus filhos vão assistir ou visitar, a legislação estabelece certas restrições ao acesso de crianças e adolescentes a depender da faixa etária da obra ou evento (art. 10).
No caso de exposições cuja classificação seja até 16 anos, os pais ou responsáveis poderão exercer livremente seu direito de escolha, podendo autorizar o acesso de seus filhos com idade igual ou superior a 10 anos à exposição (art. 10, II). Os menores de 10 anos somente poderão ingressar e permanecer nos locais de exposição quando acompanhadas dos pais ou responsáveis (§ 1º).
Contudo, nas exposições cujo conteúdo é recomendo apenas aos maiores de 18 anos, a norma determina que somente adolescentes com idade igual ou superior a 16 anos podem ser autorizados pelos pais ou responsáveis a acessá-las (art. 10, I).[5] Assim, ainda que os pais ou responsáveis desejem permitir que seus filhos menores de 16 anos visitem exposições desse tipo, há vedação legal.
Com a classificação indicativa escolhida, é preciso preparar os materiais nos quais ela será divulgada ao público. Para tanto, as placas localizadas perto das obras e nas entradas das salas expositivas[6] devem utilizar símbolos específicos da autoclassificação (art. 53), disponíveis no site do MJ, que não existiam nas Portarias anteriores.
A partir de agora, os responsáveis por exposições podem escolher se preferem exibir a classificação de forma individual ou por conjunto específico de obras (art. 54):
a) Individual (art. 55): Deve ser apresentada ao público por obra individualmente. Caso obras classificadas em faixas distintas sejam apresentadas dentro do mesmo ambiente, além da classificação individualizada em cada obra, deve ser exibido o símbolo da classificação indicativa mais elevada e dos descritores de conteúdo do conjunto na entrada da exposição
b) Conjunto específico de obras (art. 56): Deve ser apresentado o símbolo da autoclassificação e os descritores de conteúdo apenas na entrada da exposição.
A autoclassificação das exposições fica sujeita ao monitoramento do Ministério e, caso este entenda que houve inconsistência ou avaliação imprecisa, poderá solicitar materiais de divulgação do evento (não só impressos, mas também postagens na Internet) para análise e eventualmente alterar a classificação previamente dada pela instituição (art. 5º, § 3º e § 4º).
No Estado de São Paulo, existe também a Lei nº 16.793/2018, que instituiu a obrigatoriedade de classificação indicativa para exposições e mostras de artes visuais que ocorrem dentro do território estadual. O regramento é fruto de disputas políticas após os acontecimentos do 35º Panorama no MAM.
Essa lei estadual tem apenas 9 artigos e não dispõe nada além daquilo que já está estipulado na legislação federal. Em síntese, determina que as exposições abertas ao público deverão ser autoclassificadas segundo os critérios do MJ, sendo que qualquer pessoa estaria legitimada a averiguar o cumprimento dessa regra e que o descumprimento configura infração administrativa, nos termos do ECA.
Contudo, a Lei nº 16.793 não é bem vista pelos especialistas, uma vez que a competência para legislar sobre classificação indicativa é da União, conforme dito anteriormente. Em caso similar, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul determinou a inconstitucionalidade de lei estadual que tratava do tema em âmbito estadual.
Quando uma exposição apresentar obras com classificação indicativa acima de “livre”, outros cuidados podem ser tomados pelas instituições para além da inclusão de placas com as faixas etárias. A fim de evitar possíveis veiculações fora de contexto, algumas entidades culturais passaram a proibir a filmagem e fotografia de obras com conteúdo “sensível”. Entretanto, isso pode gerar conflitos com os artistas, especialmente porque a divulgação espontânea de suas obras pelos visitantes nas redes sociais pode contribuir para o impulsionamento de suas carreiras.
Ainda, é altamente recomendável que as equipes de segurança e recepção – e outras que a instituição entender pertinentes – sejam treinadas para que possam explicar questões relacionadas à classificação indicativa ao público, bem como serem capazes de resolver situações adversas.
[1] No julgamento da ADI nº 2.404 no Superior Tribunal Federal – STF, o Ministro Dias Toffoli proferiu o seguinte entendimento: “É o sistema de classificação indicativa esse ponto de equilíbrio tênue, e ao mesmo tempo tenso, adotado pela Carta da República para compatibilizar esses dois axiomas, velando pela integridade das crianças e dos adolescentes sem deixar de lado a preocupação com a garantia da liberdade de expressão. A classificação dos produtos audiovisuais busca esclarecer, informar, indicar aos pais a existência de conteúdo inadequado para as crianças e os adolescentes.”
[2] Para saber mais, recomendamos: STEIBEL, F. Classificação Indicativa: uma análise do estado da arte da pesquisa sobre o tema no Brasil. In: MACEDO, A X. N.; PIRES, David U. B. S.; DOS ANJOS, F. A. A experiência da classificação indicativa no Brasil. 1. ed. Brasília: Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Justiça, 2014, p. 27-50.
[3] Ver arts. 74 a 76 e 253 a 258 do ECA.
[4] Ver p. 29-30 do Guia Prático.
[5] Até meados de 2018 estava em vigor a Portaria MJ nº 368/2014, segundo a qual, caso uma obra fosse classificada para maiores de 18 anos, nenhum menor de idade poderia entrar no recinto, mesmo que acompanhado dos responsáveis. Foi essa a interpretação utilizada à primeira vista pelo MASP na exposição “Histórias da Sexualidade” em 2017. Logo depois, com a reação negativa dos visitantes e da imprensa, o museu voltou atrás, permitindo a entrada de menores acompanhados. A questão foi, inclusive, objeto de Nota Técnica pelo Ministério Público Federal.
[6] O Guia Prático recomenda que a classificação indicativa seja disposta em “local de fácil visualização”, “tanto no ato da compra ou aquisição do bilhete ou convite, como próximo às portas ou aos portões de acesso” (p. 17).
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