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Regulamentando o setor museológico: Proteção de bens culturais

Este é o 5º artigo da série Direito e Museus. Para ler os demais artigos, acesse: http://institutodea.com/artigo/author/mei-jou-e-olivia-bonan/.

 

No artigo anterior, falamos sobre o IBRAM e o Sistema Brasileiro de Museus, evidenciando a importância deles para o setor museológico. A partir daquele artigo, bem como dos demais que compõem esta série sobre Direito e Museus, fica evidente que as instituições museológicas – regulamentadas pelo Estatuto dos Museus, pelo Decreto nº 8.124 e pela Lei nº 11.906 – estão intimamente ligadas aos bens culturais.[1]

Esses podem ser entendidos como os bens que “se transformam em testemunhos materiais e imateriais da trajetória do homem sobre o seu território” (art. 2º, inciso I, do Decreto), tais como obras, objetos, documentos, edifícios, espaços ecológicos, sítios arqueológicos e formas de expressão (art. 216 da Constituição Federal).

Do conjunto de bens culturais, aqueles que forem incorporados – por sua ligação à identidade, cultura ou memória de determinado período, ambiente ou população – ao patrimônio de um museu passam a ser tidos como “bens musealizados” (art. 2º, incisos II e III do Decreto), perdendo suas funções originais e ganhando outros valores simbólicos ou artísticos. Assim, o conhecido mictório de Duchamp ou uma cadeira concebida pelo arquiteto holandês Rietveld deixaram de ser meros objetos do dia a dia e passaram a corresponder ao interesse e objetivo de preservação e pesquisa museológica.

 

Quais são as medidas para proteção de bens culturais?

Um dos recursos de salvaguarda existentes é o Inventário Nacional dos Bens Culturais Musealizados, consistente em um registro de dados sobre o patrimônio museológico, coordenado pelo IBRAM (art. 41 do Estatuto e art. 11 do Decreto). O Inventário é composto por informações, fornecidas periódica e diretamente pelos museus brasileiros, sobre seus acervos de obras, arquivos, documentos e outros objetos.[2] Conforme a legislação, a inclusão de tais dados não implica qualquer restrição à propriedade, posse ou outros direitos reais sobre os bens musealizados (art. 12 do Decreto).

Além do INBCM, existem outras iniciativas que visam a compilar informações sobre bens culturais musealizados, tal como o Cadastro Nacional de Bens Culturais Desaparecidos. Esse Cadastro faz parte do conjunto de ações do IBRAM voltadas ao aprimoramento de medidas de segurança nos museus e consiste em uma base de dados que consolida e divulga informações para ajudar no rastreamento e eventual recuperação de bens musealizados e bens declarados de interesse público que, por algum motivo – tais como furto ou roubo –, estão desaparecidos (art. 13 do Decreto).

Dessa forma, o Cadastro tem como uma de suas funções primordiais a repressão ao comércio ilegal e o combate ao tráfico ilícito de bens culturais, dado que informações nele contidas são compartilhadas com órgãos de segurança pública (como Polícias e Ministério Público) e de controle aduaneiro.[3]

Isso porque, em todo o mundo, milhares de bens culturais desaparecem ou são movimentados de forma ilegal todos os anos. Esse problema representa uma dificuldade para diversas nações e comunidades, o que traz à tona a necessidade de cooperação internacional para combater o tráfico e comércio ilegal de obras de arte.

Para tanto, foram publicados diversos instrumentos internacionais sobre o tema, tais como a Convenção da UNESCO sobre as Medidas a serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedade Ilícitas de Bens Culturais – promulgada no Brasil pelo Decreto nº 72.312/1973 – e a Convenção da UNIDROIT sobre Bens Culturais Furtados ou Ilicitamente Exportados – promulgada no território nacional pelo Decreto nº 3.166/1999.

Além desses mecanismos de cunho internacional, nota-se que a própria legislação nacional sobre o setor museológico reflete a necessidade de combater o referido tráfico e comércio ilegal de forma conjunta e sistemática: o Estatuto dos Museus estabelece que, para a consecução dos fins nele constantes e a reciprocidade no campo da cooperação internacional, deve ser mantido um sistema de comunicações apto a facilitar o intercâmbio internacional de informações sobre bens culturais dos museus (art. 69 do Estatuto).

Nesse sentido, o governo brasileiro prestará, no que concerne ao combate do tráfico de bens culturais dos museus, a necessária cooperação a outro país, sem qualquer ônus, para a produção de prova, exame de objetos e lugares, informações sobre pessoas, além de outras formas de assistência permitidas pela legislação (art. 68 do Estatuto).

Considerando que o tráfico e comércio de bens culturais está estruturado em vários locais do mundo, o combate a este problema depende fortemente de iniciativas de diálogo e a atuação coordenada dos governos – não só entre si, mas também com a sociedade civil.

 

E o que é a Declaração de Interesse Público?

A Declaração de Interesse Público é um instrumento existente desde 2013 que permite que certos bens culturais, pertencentes a entes públicos ou a agentes privados e cuja “proteção e valorização, pesquisa e acesso à sociedade representarem um valor cultural de destacada importância para o país”, sejam declarados de interesse público (art. 5º do Estatuto e art. 35 do Decreto), após processo administrativo.[4] Ao que tudo indica, o objetivo principal dessa medida é garantir que bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro não sejam destruídos, inutilizados ou degradados.

O proprietário de um bem declarado de interesse público, sob pena de responsabilização administrativa, civil e penal, deverá adotar medidas de proteção e conservação, enviar anualmente informações sobre o estado de conservação do bem ao IBRAM, bem como comunicá-lo sobre dano, furto ou extravio ou até mesmo sobre dificuldades financeiras que possam afetar a proteção e preservação do bem. Além disso, não poderá intervir, sem a concordância do IBRAM, no bem cultural, sendo que este não pode sair de forma permanente do país, exceto para fins de intercâmbio cultural por curto período. Por fim, caso o proprietário decida vendê-lo, o IBRAM terá direito de preferência em sua aquisição (arts. 40 a 43 do Decreto).

De acordo com a legislação, o processo declaratório é instaurado perante a Presidência do IBRAM, mediante recomendação técnica do próprio órgão, da pasta da Cultura no Poder Executivo federal, ou por requerimento de qualquer interessado, inclusive o próprio proprietário do bem (art. 37 do Decreto). Ainda, há possibilidade de a Declaração ser concedida cautelarmente (isto é, antes da finalização do processo administrativo), na hipótese de risco à integridade do bem cultural (art. 35, § 2º, do Decreto).

Os procedimentos demandam alto grau de conhecimento especializado, incluindo extensa documentação técnica e comprobatória, e tramitação em diversas instâncias, com várias fases que culminam na homologação da declaração (arts. 38 e 39 do Decreto). Para além das regras do Decreto nº 8.124, vale consultar também as normas complementares da Resolução Normativa nº 02/2019.

A importância da Declaração de Interesse Público reside no fato de ser um mecanismo disponível na legislação para a proteção do patrimônio cultural brasileiro. Entretanto, diversas são as críticas veiculadas – especialmente por entes particulares – com relação a esse instrumento, que acabou por criar um antagonismo entre proprietários e mercado, de um lado, e profissionais da museologia e o Estado, de outro.

De acordo com opiniões de colecionadores e agentes de mercado, há receio de que a Declaração acabe por dificultar a vinda ou o empréstimo de obras raras às exposições e ao mercado brasileiro, em razão da possibilidade de uma peça ser declarada de interesse nacional, o que levaria a restrições a sua comercialização e ao seu monitoramento pelo governo.[5][6]

Além disso, tais críticas contrastam o dever estatal de proteção aos bens culturais com o direito de propriedade do dono da obra, questionando a legitimidade do Estado em restringir o domínio dos colecionadores particulares sobre a obra e, em alguns casos, desapropriá-los. Nesse sentido, críticos ao instrumento da Declaração afirmam que o dispositivo, em razão de permitir o monitoramento dos bens pelo Estado, acabou por limitar a autonomia do colecionador em dispor daquilo que lhe pertence.[7]

Tal julgamento foi enfaticamente rebatido pelo presidente do IBRAM, Angelo Oswaldo, na época de promulgação do Decreto. Segundo ele, a Declaração de Interesse Público não representa uma “censura de obras musealizáveis”, mas uma política “de acautelamento, de proteção e de salvaguarda” do patrimônio museológico.[8] Ainda, afirma que o instrumento busca a defesa do interesse público – e não do interesse estatal.[9]

À luz de tantas controvérsias, bem como de inseguranças por parte dos entes particulares quanto à aplicação das várias disposições constantes na legislação e quanto ao fato de o trâmite burocrático exigido potencialmente causar danos irreversíveis ao bem[10], foram abertos diálogos entre o poder público, colecionadores e agentes do mercado de arte, de forma a esclarecer o que se pretendia com a Declaração e qual é o objetivo do Estatuto dos Museus e do Decreto.[11]

A partir de todo o debate a respeito da Declaração de Interesse Público, fica evidente que, para que a legislação a respeito das instituições museológicas seja bem construída, é fundamental a realização de ampla discussão pública, que envolva os vários setores da sociedade interessados no tema.

 

[1] Para mais informações sobre o conceito de bem cultural, veja: http://portal.iphan.gov.br/dicionarioPatrimonioCultural/detalhes/79/bem-cultural.

[2] Em 2014, o IBRAM publicou as Resoluções Normativas nº 01/2014 e 02/2014, que estabelecem procedimentos para o INBCM e definem, entre outros tópicos, quais elementos de descrição irão compor as informações sobre os bens culturais musealizados que deverão ser declaradas no INBCM. Em 31 de agosto de 2021, foi publicada nova Resolução que substituirá as normativas anteriores a partir de 1º de outubro deste ano.

[3] Para mais informações sobre o procedimento para envio de informações ao Cadastro, veja: https://www.gov.br/pt-br/servicos/cadastrar-bens-culturais-musealizados-desaparecidos e https://www.sisemsp.org.br/ibram-cadastro-nacional-de-bens-musealizados-desaparecidos/.

[4] Para mais informações sobre a Declaração, veja: https://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2020/01/caderno_Preservacao-de-bens-culturais_atualizado-Web.pdf.

[5] STRECKER, Márion. Decreto-confusão, in Select, 19-02-2014. Disponível em: https://www.select.art.br/decreto-confusao/.

[6] MARTÍ, Silas. Teste de resistência. Folha de São Paulo, 31-03-2014. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/158943-teste-de-resistencia.shtml.

[7] JUNIOR, Eugenio P. S. R. O Decreto nº 8.124/2013. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4491, 18-10-2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36014.

[8] PARENTE, Elisa. Arte de quem?, in O Povo, 09-11-2013. Disponível em: https://www20.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2013/11/09/noticiasjornalvidaearte,3160554/arte-de-quem.shtml.

[9] VASCONCELLOS, Paulo. Os donos da cultura, in Observatório da Imprensa, 31-12-2013, disponível em http://www.observatoriodaimprensa.com.br/interesse-publico/_ed779_os_donos_da_cultura/.

[10] ROCHA, Norma Regina Coutinho. O Decreto nº 8.124/2013 e a Declaração de Interesse Público de bens culturais passíveis de musealização: Tensões, disputas e interesses em jogo. 220 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020, p. 136.

[11] STRECKER, Márion. Entrevista Carlos Dale e Antonio Almeida, in Select, 19-02-2014, disponível em https://www.select.art.br/entrevista-carlos-dale-e-antonio-almeida/.

 

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