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Mickey Mouse e a exclusividade (quase) eterna

A constituição americana é considerada a mais curta lei fundamental de uma nação soberana. Ainda assim, dentre as 4.400 palavras ali escritas, uma parte delas trata, curiosamente, de uma norma de propriedade intelectual. Já em 1787, os “Founding Fathers” prescreveram, logo em seu Artigo I, como competência do Congresso “Promover o progresso da ciência e das artes úteis, garantindo, por tempo limitado, aos autores e inventores o direito exclusivo aos seus escritos ou descobertas”.[1]

Ao analisarmos esta disposição com alguma atenção percebemos que a garantia da exclusividade sobre os “escritos ou descobertas” há de ser delimitada em um período temporal.  Percebemos, ainda, o germe das várias legislações posteriores que hão de organizar a temática no país. A terra do Mickey Mouse já pensava as sementes do “copyright” antes mesmo do ratinho pensar em existir. Importante perceber ainda que esta previsão acaba por elevar ao patamar de lei fundamental o domínio público, uma vez que, segundo a disposição transcrita, conclui-se que após a passagem de um determinado tempo a obra poderá ser livremente utilizada pelo público em geral. [2]

No Brasil, o tempo para que uma obra entre em domínio público é de 70 anos após o falecimento de seu autor (com exceção de fotos e obras audiovisuais, nas quais o prazo começa a contar de sua divulgação). Nos Estados Unidos, por sua vez, a regra original prescrevia como necessária a passagem de 50 anos de publicação da obra. Voltemos ao Mickey Mouse: o personagem teve sua primeira aparição em 1928, no filme “Steamboat Willie”. Entretanto, o Mickey “original” continua sendo de propriedade exclusiva da Walt Disney.

A manutenção dos direitos exclusivos do ratinho até os dias atuais é fruto de uma manobra no Congresso Americano. Uma não, duas! Ao perceberem que o personagem estava prestes a cair em domínio público, a empresa movimentou-se para que o Congresso discutisse e aprovasse uma lei que ampliou para 75 anos o prazo referente a todas as obras publicadas posteriormente ao ano de 1922. Depois, novamente, quando a possibilidade de cair em domínio público bate à porta do ratinho, o Congresso estende o prazo de 75 para 95 anos para alcançar o domínio público.

Ao somarmos 1928 com 95 temos o número 2023. Ou seja, o Mickey do filme “Steamboat Willie” cairá em domínio público em primeiro de janeiro de 2024. Dadas as manobras anteriores da Walt Disney, seria muito ingênuo acreditar nesta afirmação? O Mickey Mouse nunca cairá em domínio público?

Observando o histórico de dilatações dos prazos, poderíamos escolher argumentar que sim. Em uma espécie de exercício de futurologia podemos dizer que “o Mickey nunca será domínio público”. Esta alegação, contudo, parece não mais se sustentar de maneira tão absoluta. Isso porque o ano de 2024 se aproxima e não se percebe, até o momento, uma movimentação da empresa ou do Congresso para prosseguir estendendo este prazo. Além disso, o cenário social e político que garantiu essa continuidade há tempos, hoje, é outro, muito devido ao advento da internet.

Há, no presente momento, uma espécie de coalizão emergente que exige a reforma dos direitos autorais, não só no Brasil, mas no mundo. A expansão da internet acabou por fazer com que pessoas se beneficiem mais do domínio público atualmente do que pelos idos de 1998 (quando nossa lei foi aprovada). Os tempos são outros, e o são de maneira a materializar o escrito constitucional – que também garante o amplo acesso à cultura como direito fundamental.

Se assim o for, o que significa ter o Mickey de 1928 em domínio público? Significa, primeiramente, ter apenas a versão original da animação em domínio público – aquela, do Mickey que ainda não veste as luvas brancas características, é mais esguio, e claro, ainda em preto e branco. Aliás, já surge daí uma boa discussão: estaria o personagem também abarcado pelo domínio público? Qual o prazo de contagem de sua proteção, neste caso?

Steamboat Willie. Fonte: FANDOM,  https://disney.fandom.com/wiki/Steamboat_Willie

                As versões posteriores e mais atualizadas continuarão protegidas e com a exclusividade garantida. Resumidamente, uma vez em domínio público, deixa de ser exclusividade do proprietário a reprodução e distribuição de cópias, a criação de trabalhos derivados e a execução pública do desenho animado. No entanto, isso não significa dizer que a “trademark”, ou seja, a marca registrada Mickey, ainda que referente ao personagem de Steamboat Willie, expire com a chegada de 2024. A proteção sobre marcas pode ser continuadamente renovada pelo seu interessado.

Desta forma, mesmo quando os direitos autorais significativos expirarem, a empresa pode usar a lei de “trademark” como ferramenta para produtos não autorizados do Mickey Mouse, já que os consumidores podem se confundir sobre a origem do produto – acreditando se tratar de um produto original da Disney, da marca “Mickey Mouse”. A Suprema Corte americana em caso semelhante envolvendo a Twentieth Century Fox alegou cuidado para evitar a extensão excessiva das marcas registradas nas áreas que são tradicionalmente ocupadas pelos direitos autorais.

O futuro do mais popular símbolo da Disney está em jogo. Não é possível afirmar categoricamente que o ratinho cairá em domínio público, e nem se, caso isso ocorra, a Disney optará por uma vigia severa por meio das leis de “trademark”. Mas, a aposta que fica é que logo o Mickey Mouse magrelo estampará mais e mais camisetas por aí.

 

Fontes: https://www.forbes.com/sites/deborahsweeney/2011/09/01/when-cartoons-get-copied-5-characters-that-have-faced-trademark-infringement/?sh=b2958025e3f1

https://arstechnica.com/tech-policy/2019/01/a-whole-years-worth-of-works-just-fell-into-the-public-domain/

https://arstechnica.com/tech-policy/2018/01/hollywood-says-its-not-planning-another-copyright-extension-push/

https://blog.jipel.law.nyu.edu/2019/12/in-2024-mickey-mouse-will-finally-enter-the-public-domain-sort-of/#_ftn1

https://www.financialpoise.com/copyright-law/

https://anaclaudiazandomenighi.jusbrasil.com.br/artigos/787239629/dominio-publico-no-brasil-e-nos-estados-unidos#:~:text=Nos%20Estados%20Unidos%20a%20regra,anos%20ap%C3%B3s%20a%20sua%20publica%C3%A7%C3%A3o

https://supreme.justia.com/cases/federal/us/539/23/

 

Notas:

[1]  “To promote the progress of science and useful arts, by securing for limited times to authors and inventors the exclusive right to their respective writings and discoveries.” U.S. Const. art. I, § 8,cl. 8

[2] Lembramos que, como regra, ninguém pode utilizar obras protegidas por direito autoral sem a prévia e expressa autorização do autor. Não obstante, essa proteção tem prazo de duração. Ou seja, depois de certo tempo, a obra cai em domínio público, podendo ser livremente aproveitada por todos.

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