Na primeira parte deste artigo, discutimos alguns dos efeitos negativos das mudanças climáticas sobre a cultura, acarretando não só em perdas para indivíduos e grupos específicos, mas para a cultura global como um todo. Dessa forma, o que os gestores públicos e a sociedade podem fazer para abordar esses desafios? Talvez possamos encontrar parte da solução se invertermos a nossa pergunta inicial e refletirmos: como a cultura afeta as mudanças climáticas?
Antes de mais nada, é importante compreender o ponto de convergência da cultura e do meio ambiente como pilares da sustentabilidade e, portanto, como dimensões alinhadas com os dois valores que compõem o conceito de sociedade sustentável: justiça intergeneracional, em que as gerações presentes têm o direito de suprir suas necessidades sem prejudicar o direito das gerações passadas; e justiça intrageracional, que exige solidariedade entre países, comunidades e pessoas de uma mesma geração, considerando que as externalidades negativas do desenvolvimento estão distribuídas desigualmente, sobrecarregando os grupos mais vulneráveis, com menos capacidades e recursos para reagir. Em outras palavras, cultura e meio ambiente (e seus respectivos direitos) devem ser planejados e geridos de modo que seja garantida sua continuidade ao longo dos anos e igual oportunidade de acesso para diferentes classes, povos e regiões.
Assim, o primeiro potencial que destacamos aqui é a cultura como um núcleo carregado de valores e reflexões, em constante fluxo e transformação, configurando-se num importante elemento de pressão para que tais demandas de justiça sejam contempladas pela agenda pública. Políticas públicas frequentemente enfrentam interesses conflitantes sobre quais questões devem ser priorizadas pela administração, de modo que a cultura pode ser um instrumento para engajar grupos de atores diversos e fortalecer as referidas demandas. Além disso, no campo das mudanças climáticas, as comunidades mais vulneráveis e menos favorecidas (pobres, mulheres, negros, indígenas, entre outras minorias) tendem a ser as mesmas, tanto para acesso dos direitos culturais quanto dos direitos ambientais.
Além de pressionar, a cultura também tem o potencial de integrar pautas. A noção de sustentabilidade se manifesta em diferentes setores da sociedade, que, por sua vez, apesar de suas peculiaridades, estão interconectados e interdependem. Essa complexidade torna fundamentais as ações que possuam uma visão sistêmica, ou seja, capazes de abraçar essa transversalidade, integrando os vários sistemas e mobilizando diversos atores. Então, o alcance e força das políticas culturais não precisa se limitar ao campo da cultura, podendo contribuir para envolver, conscientizar e inspirar outras demandas, conectando agendas distintas. Uma gestão urbana que busca uma relação mais saudável com o meio ambiente, por exemplo, pode investir em transporte público, ciclovias e cidades caminháveis, contribuindo para uma mudança nos hábitos e formas que as pessoas interagem com o meio, que por sua vez contribui para requalificação urbana e redução da poluição, com diminuição no uso de transportes veiculares individuais.
Outro dos atributos da cultura que a tornam essencial para o desenvolvimento humano é a capacidade de prover substrato para o pensamento e a imaginação, de modo que possamos reinventar nossas relações, sejam elas com outras pessoas, com passado e futuro, ou com o meio ambiente. Isso significa que a cultura pode gerar capacidades, sejam elas habilidades ligadas ao trabalho, à educação, ao lazer ou outras atividades de desenvolvimento pessoal. Tais capacidades favorecem a criatividade, que por sua vez alimenta a exploração de soluções para aperfeiçoar a qualidade de vida e o funcionamento dos sistemas (incluindo, é claro, dos sistemas socioecológicos). Ademais, cidades com mais capacidade de produção cultural também possuem maior potencial de desenvolvimento econômico.
A diversidade cultural também é um elemento que favorece a resistência às mudanças climáticas, uma vez que promove diferentes percepções da relação entre o homem e a natureza. Culturas tradicionais, tais como as culturas indígenas e quilombolas, além de questionarem os modos de produção predatórios da sociedade moderna, buscando uma dinâmica mais equilibrada com a natureza, possuem centenas a milhares de anos de práticas e experiências sobre como a natureza se manifesta e interage, sobre conhecimentos medicinais e sobre estratégias de conservação. A perda dessas culturas representa também a perda de diversos conhecimentos tradicionais, muitos deles transmitidos oralmente e, portanto, sujeitos a um desaparecimento irrecuperável.
A cultura favorece ainda o desenvolvimento e fortalecimento da auto-estima das cidades, da apreciação da memória coletiva, da identidade histórica e cultural da região, bem como da preocupação com a preservação do patrimônio (material e imaterial) comum. A conexão emocional de uma comunidade a determinado lugar e a consequente indisposição de seus membros para eventualmente migrar para regiões de menor risco, por medo de perda de sua continuidade cultural, favorecem a resiliência da comunidade, que tende a se tornar mais coesa, mais solidária e mais motivada a se preparar para situações de desastres. Ou seja, a cultura é um elemento que promove uma melhor adaptação aos efeitos das mudanças climáticas.
Outra dimensão a ser considerada, que também abarca juntamente as pautas do meio ambiente e cultura, é o setor de entretenimento, lazer e, principalmente, turismo, o qual é uma fonte relevante para geração de renda, com enorme potencial para o desenvolvimento de atividades e estruturas sustentáveis. Nesse caso, a cultura e o meio ambiente se complementam e se fortalecem: a existência de patrimônios culturais e naturais em determinada região pode intensificar o interesse e a busca por atividades turísticas que, por sua vez, podem consolidar a proteção e valorização desses patrimônios (por exemplo, através de tombamentos, desapropriações, fiscalização, dentre outros mecanismos de preservação).
Por fim, a cultura também pode contribuir para mitigação da crise climática através de suas instituições, incentivando e adotando práticas para reduzir o impacto ambiental de suas atividades. Transição para fontes de energia limpa e renovável ou definição de políticas para redução do desperdício energético em centros culturais, bibliotecas, museus e outros estabelecimentos; organizações de eventos culturais que associam temáticas de conservação e sustentabilidade, bem como estabelecimento de estratégias de coleta, separação e reciclagem de resíduos durante e após os eventos; e criação de espaços que integram cultura e meio ambiente, tais como tetos verdes e construções sustentáveis, são algumas das possíveis combinações que podem ser organizadas por essas instituições.
A cultura, assim, não apenas é uma dimensão afetada pela crise climática, mas também um setor com potencial de contornar as causas e efeitos dessas alterações. A cultura pode contribuir através da criação de capacidades, do questionamento de paradigmas, da transformação do status quo e da conscientização, de modo que o intangível gera efeitos tangíveis. Ou pode ainda gerar impactos diretos na gestão ambiental, contribuindo para mitigação e adaptação às mudanças climáticas, para o desenvolvimento de sociedades mais resilientes e para a redução dos impactos ambientais das próprias atividades culturais. Cabe aos gestores e sociedade não subestimar a cultura da mesma forma que subestimamos o meio ambiente.
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