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Reflexões sobre a tutela jurídica de grafites em espaços públicos

Nesta semana, parte do mural de grafites da avenida 23 de Maio foi coberta de tinta cinza pela Prefeitura de São Paulo. A ação faz parte do Programa Cidade Linda, criado pelo atual prefeito João Doria (PSDB), que visa reparar e revitalizar os bairros da capital. O caso acabou gerando uma grande comoção e onda de críticas da sociedade, da classe artística e da mídia. O mural havia sido encomendado pela gestão anterior a custo de R$ 1 milhão e participação de cerca de 200 grafiteiros. [1]

 

Em resposta, o Secretário de Cultura, André Sturm, afirmou que somente foram apagadas as pinturas danificadas, com cores esmaecidas, pichadas ou muito poluídas. Não obstante, reconhecendo que a avenida se tornou muito cinza, anunciou um possível festival do grafite para o local. O Prefeito, por diversas vezes, se manifestou contrário à pichação e promete tolerância zero contra a prática.

 

A questão reacende o debate (e embate) sobre o uso do espaço público, políticas de repressão, distinções entre vandalismo e arte de rua, entre outros tantos aspectos controversos. Obviamente, são muitos os desdobramentos jurídicos a esse respeito. Nesse artigo, queremos destacar a possível violação de direitos culturais quando o grafite autorizado pelo Poder Público é simplesmente apagado sem o consentimento de seus criadores.

 

Os direitos culturais foram previstos pela primeira vez, no plano internacional, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, que os qualificou como indispensáveis à dignidade e ao livre desenvolvimento da personalidade. [2] Desde então, foram diversos tratados, declarações e convenções versando diretamente sobre os direitos culturais.

 

A Constituição Federal brasileira, em seu artigo 215, prevê que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. Isso impõe aos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, em todas as esferas da federação, uma postura propositiva e diligente em busca da concretização desses direitos, de acordo com suas respectivas competências.

 

Entretanto, no caso da pintura sobre os grafites, a própria Administração Pública pode ter violado três espécies de direitos culturais: o direito de autor, o direito ao patrimônio cultural e o direito de participação na vida cultural e nas políticas culturais da sociedade. Vejamos a seguir o porquê.

 

Os direitos autorais tutelam um conjunto de prerrogativas do criador sobre sua obra. [3] Dentre elas, é assegurado o direito à integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações. Da mesma forma, cabe única e exclusivamente ao titular dos direitos utilizar, fruir ou dispor de sua obra. Tais previsões garantem, como regra geral, que nenhum terceiro possa utilizar ou modificar essa obra sem autorização, sob pena de indenizações na esfera civil e até condenações no âmbito criminal.

 

O grafite se enquadra dentre as criações protegidas pelos direitos autorais, conforme previsão do artigo 7º, da Lei n.º 9.610, de 1998. Essa tutela já foi reconhecida por diversas vezes no Poder Judiciário, inclusive, no Tribunal de Justiça de São Paulo. [4] Logo, os murais e painéis de grafite, estejam eles localizados em logradouros públicos ou privados, recebem a proteção dos direitos autorais. [5]

 

Por essa linha, parece questionável que a Prefeitura, sem a devida autorização e consentimento dos autores, possa simplesmente apagar o grafite – mesmo sob o pretexto de deteriorização. Basta fazer a analogia com outros tipos de obras que também fazem parte de exposições em vias públicas como esculturas, quadros e fotografias. É defensável a sua simples destruição ou descarte em razão do desgaste material? O grafite, ainda que sujeito às intempéries do clima, da poluição e até de pichadores, segue a mesma lógica. Afinal, a efemeridade de uma manifestação artística não é critério para desconstituir sua proteção.

 

O assunto torna-se ainda mais delicado se considerarmos que os painéis da avenida 23 de Maio já haviam se incorporado ao patrimônio artístico e cultural da cidade. O direito de preservação e promoção do patrimônio engloba a proteção às diversas formas de expressão, criações artísticas, espaços destinados a manifestações culturais e conjuntos urbanos dotados de algum valor simbólico. [6]

 

O patrimônio cultural é um importante referencial da nossa identidade. Ele guarda nossos valores, costumes, hábitos, sonhos e visões de mundo. É um elo de ligação entre nosso passado, presente e futuro. O patrimônio cultural é uma riqueza material e imaterial que deve ser constantemente tutelada em prol dos indivíduos e da coletividade. Tanto é que o dano ao patrimônio (ou sua iminência) pode ensejar a propositura de medidas judiciais como a Ação Civil Pública ou como Ação Popular.

 

O conjunto de grafite da 23 de Maio foi reconhecido como o maior à céu aberto da América Latina e um dos maiores do mundo. A despeito da sua dimensão física e “pouco tempo de vida”, já haviam sido incorporados como um símbolo da cultura urbana de São Paulo. Integraram-se, portanto, não apenas à paisagem e meio ambiente da metrópole, como também ao imaginário e memória coletiva. Frise-se que se tratava de um trabalho de cerca de duzentos grafiteiros.

 

Nos parece que essa violação do patrimônio cultural é ainda mais gravosa se considerarmos o baixo nível de diálogo da Administração junto à sociedade e aos próprios autores. Isso nos leva à problemática de outro direito cultural: o direito de participação na vida cultural e nas políticas culturais da sociedade. Especialmente nos últimos cinquenta anos, reconheceu-se que cada povo e cada população deve ser parte ativa na decisão sobre os rumos de sua própria cultura. Daí a defesa pela criação de instâncias democráticas de diálogo e participação na elaboração e implementação de políticas culturais. De fato, grande parte do alvoroço e protestos talvez pudesse ter sido evitado se os grafiteiros tivessem sido chamados, desde o início, para restaurar seus próprios trabalhos.

 

No caso concreto, conclusões assertivas merecem maior aprofundamento. É preciso estudar outros aspectos jurídicos como a autorização concedida pela Prefeitura na gestão anterior e o interesse público na ação. Aos interessados pelo Direito Administrativo, nos parece haver margem para debate sobre o atendimento ao Princípio da Economicidade. Quisemos aqui fazer apenas algumas reflexões a respeito da tutela de alguns direitos culturais envolvidos no evento.

 

Abraços e boas ideias.

 

 

[1] Conferir: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/24/politica/1485280199_418307.html; http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/01/grafites-em-muros-de-avenida-de-sao-paulo-sao-pintados-de-cinza.html ; http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/01/1852162-doria-passa-tinta-cinza-e-apaga-grafites-da-avenida-23-de-maio.shtml; http://oglobo.globo.com/brasil/doria-apaga-grafites-em-avenida-cria-polemica-em-sp-20815081

[2] Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Artigo XXII – Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação  internacional  e  de  acordo  com  a  organização  e  recursos  de  cada  Estado,  dos  direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Artigo XXVII  –  1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios. 2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.

[3] Os direitos autorais estão fundamentados, especialmente, no artigo 5º, incisos XXVII e XXVIII, da Constituição Federal, e na Lei n.º 9.610/98.

[4] Conferir Apelações: 0215338-75.2010.8.26.0100, 0139036-39.2009.8.26.0100, 0139084-90.2012.8.26.0100.

[5] A Lei n.º 9.610/98, em seu artigo 48, prevê que “as obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais.” Isso não significa que grafites em locais públicos possam, por exemplo, ser reproduzidos para fins comerciais em linhas de produto, muito menos destruídos livremente.

[6] O direito ao patrimônio cultural está previsto na Constituição Federal em seus artigos 5º, LXXIII, 215, §3º, inciso I, e 216.

 

Photo by Wally Gobetz. In: Flick. Painel de Eduardo Kobra.

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