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O caso Brancusi versus Estados Unidos: o Direito discute a Arte

Considerado por muitos como um dos casos fundadores do campo do Direito da Arte,  Brancusi versus Estados Unidos originou-se de uma simples questão alfandegária. Em 1926, o fotógrafo norte-americano Edward Steichen comprou a escultura Bird in Space (Pássaro no Espaço) diretamente de seu autor, o escultor romeno radicado na França Constantin Brancusi. Pouco tempo depois, um conjunto de 20 esculturas em bronze e mármore, entre as quais Bird in Space, atravessou o Atlântico sob a supervisão de Marcel Duchamp para ser exposto em Nova York e em Chicago. No entanto, antes de liberarem o conjunto de obras rumo a seu destino final, as autoridades alfandegárias norte-americanas decidiram taxá-las em 40% do seu valor declarado, pois as consideraram como bens manufaturados que, além disso, estariam na categoria de “utensílio de cozinha ou equipamento para hospital”!

 

Após o protesto dos envolvidos na organização das exposições, a maior parte das obras foi liberada do encargo e recebeu um visto de trânsito para que fosse exposta, mas não Bird in Space, que continuava a ser considerada um bem manufaturado importado que deveria ser taxado. Inconformado, Brancusi resolveu iniciar um litígio perante a Corte aduaneira para que ela fosse declarada uma obra de arte e, como tal, isenta de tributos. Para tanto, contou com um rol de testemunhas, incluindo renomados artistas e críticos de arte, que diante do juiz Waite expuseram a opinião de que aquele objeto se tratava sim de uma obra de arte. As discussões no curso do processo foram acaloradas, em grande parte pelo fato de as esculturas em questão se enquadrarem no conceito de arte abstrata, que na época ainda não era muito compreendido ou aceito. A questão sobre se poderiam ser cobradas as taxas alfandegárias, apesar de ser a causa do litígio, tornou-se então secundária em face de outras questões essenciais e de enorme relevância para o Direito e para o mundo da Arte, dois universos que talvez até então nunca tivessem se cruzado de forma tão marcante. A discussão que se travou na corte não foi apenas se aquele objeto metálico que poderia muito bem ser confundido com uma hélice de avião era ou não uma escultura: dela derivou-se uma discussão mais ampla sobre o que afinal seria uma obra de arte.

 

Que Constantin Brancusi era de fato um escultor, um artista, era inegável; inclusive por já naquela época gozar de um reconhecimento considerável e de haver exposto em território norte-americano mais de uma década antes, no Armory Show de 1913. Dos anos 1920 aos 1940, Brancusi dedicou-se quase que inteiramente ao tema do voo do pássaro, buscando retratar o movimento do animal mais do que a sua forma física. As 20 esculturas que haviam sido enviadas aos Estados Unidos em 1926 se inseriam justamente nesse período da carreira de Brancusi, e poderiam ser consideradas todas como variações sobre um mesmo tema. Em Bird in Space, embora não sejam retratadas as penas, as asas ou o bico de um pássaro, Brancusi, como o título da obra pode indicar, ateve-se ao tema do voo do pássaro, buscando representa-lo em sua essência, por meio de uma figura comprida, delgada e pontiaguda, em bronze reluzente.Vale ressaltar também que, mesmo que não se enquadrasse propriamente em nenhum dos influentes movimentos de vanguarda do início do século passado, Brancusi convivia e trocava ideias com muitos dos artistas que com eles se identificavam, e sobre muitos deles, notadamente artistas como Marcel Duchamp, com seus ready-made, era notória a fascinação exercida pelos objetos industriais.

 

O relator do caso, o juiz Waite, entendeu que sob a influência de escolas de arte moderna, os pontos de vista que prevaleciam em outros tempos sobre os critérios necessários para que determinado objeto fosse considerado uma obra de arte nos termos da lei modificaram-se. Por outro lado, os promotores norte-americanos, resistindo à ideia de tratar-se a obra em questão de uma escultura, aludiram à decisão do caso Olivotti contra Estados Unidos, de 1916, na qual considerou-se que uma escultura seria necessariamente uma “imitação de objetos naturais, particularmente de formas humanas, representando os objetos em suas proporções verdadeiras”. As testemunhas arroladas pela defesa, também elas artistas e críticos de arte, defensoras de uma visão mais classicista, não convenceram o tribunal de que Bird in Space não seria uma escultura. Em sua decisão, o juiz Waite afirmou: “uma escola dita moderna desenvolveu-se e seus proponentes tentam representar ideias abstratas mais do que imitar objetos naturais. Sejamos ou não simpatizantes dessas ideias vanguardistas e das escolas que as incarnam, estimamos que sua existência e sua influência sobre o mundo da arte devem ser reconhecidos e levados em conta pelos tribunais” (minha tradução). A partir dos testemunhos recolhidos, a corte aduaneira considerou Bird in Space uma produção original de um escultor profissional que, sendo, portanto, uma obra de arte, não poderia estar sujeita a qualquer taxa aduaneira.

 

Apesar da importância do caso, seria incorreto supor que as questões que o permearam foram superadas. Na verdade, elas ressurgiram diversas vezes, em casos análogos, não só nos Estados Unidos, mas também em outras partes do mundo. Não poderia ser diferente, pois muitas  foram as vezes em que as barreiras entre aquilo que é aceito em determinado período e lugar como arte e aquilo que não o é foram transpostas. Ao Direito cabe, assim como ocorreu no caso Brancusi, responder à altura aos desafios trazidos pelo universo da arte.

 

 

Bibliografia:

Brancusi contre Etats-Unis. Un procès historique, 1928. Paris: Adam Biro, 2003.

CLEARY, Mary Kate. “But is it Art?” Constantin Brancusi versus the United States.” MoMA, 2014.

Disponível em https://www.moma.org/explore/inside_out/2014/07/24/but-is-it-art-constantin-brancusi-vs-the-united-states/

DELAVAUX, Céline; VIGNES, Marie-Helène. Les Procès de l’Art. Paris: Editions Palette, 2013.

GIRY, Stéphanie. “An odd bird.” Legal Affairs. Setembro/Outubro, 2002.

Disponível em http://www.legalaffairs.org/issues/September-October-2002/story_giry_sepoct2002.msp

HARTSHORNE, Thomas. “Modernism on Trial: C. Brancusi v. United States (1928).” Journal of American Studies, 20 (1), 1986, p. 93-104.

MANN, Tamara. “The brouhaha: when the bird became art and art became anything.” Spencer’s Art Law Journal, Nova York, 2 (2), Outono 2011.

Disponível em http://www.artnet.com/magazineus/news/spencer/spencers-art-law-journal-12-9-11.asp

 

Foto da capa: escultura Bird in Space, de Brancusi. Fonte: Widewalls.

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